segunda-feira, 18 de junho de 2012

Da legalidade da cesariana, ou das cesarianas desnecessárias


Nossos obstetras, agarrados ao osso do nascimento cirúrgico, erguem como um trunfo o corpo da ativista australiana morta (aliás, no hospital).

E escondem em seus armários os corpos das mortes em decorrência de cesarianas desnecessárias, eletivas, agendadas, aquelas que a sociedade vê como "o médico fez tudo que era possível, fez a cesárea, tudo direitinho".

Marsden Wagner, quando Diretor de Saúde Materno-Infantil da Organização Mundial de Saúde, alertou para o número alarmante de mulheres que morriam anualmente no Brasil em decorrência dessas cesarianas: 500 mulheres!

Quando a Rede Parto do Princípio denunciou ao Ministério Público Federal, as taxas absurdas de cesarianas na rede suplementar, Marsden Wagner enviou uma mensagem pessoal:

"Gostaria de parabenizá-las pela realização deste importante trabalho pelo fim das cesarianas desnecessárias no Brasil. A mortalidade materna no Brasil é alta demais e é a maior entre as maiores taxas de cesárea do mundo. Bons trabalhos mostram que a taxa de mortalidade de mulheres que passam por cesarianas eletivas é aproximadamente 3 vezes maior que as que passam pelo parto normal. Centenas de mulheres morrem anualmente devido a cesarianas desnecessárias. O trabalho de voces é muito importante. Por favor, mantenham-me informado.

Sinceramente,
Professor Marsden Wagner M.D.
Diretor de Saúde da Criança e da Mulher
Organização Mundial Saúde"

Outra coisa.

Não existe um procedimento chamado "cesariana a pedido". Não no mundo da legalidade.

Se há obstetra despudorado o suficiente para lançar esta frase como indicação de cirurgia num prontuário, das duas uma: ou é petulância, ou ignorância.

Portanto, não digam - srs. obstetras, cremesp, sociedade - que fazem cesarianas porque as mulheres querem: os senhores NÃO PODEM fazer cesariana "a pedido". Se pudessem, se isto fosse um direito, o mesmo direito estaria disponível às mulheres que utilizam o SUS. Direito não envolve poder de compra.

É por isto que o agendamento sempre vem acompanhado de uma indicaçãozinha básica: "vamos marcar, porque logo se vê que você não tem passagem!" E então o prontuário pode ser preenchido com a devida vênia: "desproporção céfalo-pélvica".

Quase toda indicação nasce dos laudos de ultrassom: "hum... tá com pouco líquido, hein? vamos marcar." hum... placenta velha. Cordão enrolado. Bebê muito grande.

E mesmo as cesáreas descaradamente agendadas, a pedido mesmo, para 11/11/11, ou de modo que não seja de capricórnio, doutor, pelo amor de deus que já basta o meu marido - mesmo pra estas sempre rola um comentário: "viu como foi bom fazermos a cesárea? olha só, as circulares do cordão!" - afinal o doutor terá que em seguida lançar uma indicação no prontuário, e a barbárie ainda não chegou ao ponto de se poder assumir: "cesariana por motivo astrológico".

E por que não se institui logo a cesariana a pedido para todos? Afinal, as maternidades particulares são formatadas para as cesáreas em série, os consultórios estão organizados em função dos dias em que o doutor opera e os dias em que está no consultório, as faculdades de medicina ensinam que cesariana é a regra, então por que não regularizam logo a esbórnia?

Primeiro, que o país é grande e contrastante demais para dar conta da cesárea como "direito de escolha". Não há hospitais em todos os recantos recônditos desse mundão. Aliás, pelo mesmo motivo não se pode, por exemplo, proibir o parto domiciliar assistido por parteira. Simplesmente porque não há outra alternativa para grande parte das brasileiras - sorte das mulheres urbanas que desejam parir de forma desmedicalizada, como recomenda a Organização Mundial de Saúde para o baixo risco - ou seja, para a grande maioria das mulheres.

E nesse conflito encontramos ainda outro ponto nevrálgico: onde irão encontrar nossos chefes de tocoginecologia, material didático melhor do que mulheres parindo em seus hospitais-escola para o aprendizado de seus residentes? Períneos em abundância para o treino de corte e costura! Episiotomias e suas episiorrafias em 100% dos partos! Tão necessário quanto cortar nossos esfíncteres a cada excreção "só pra dar uma ajudinha, senão não sai!" E o uso de fórceps em todas as primíparas - também para fins didáticos - sem nenhum tipo de esclarecimento à mulher, que sai de lá carregando pro resto da vida o peso de seu filho "ter precisado ser puxado a fórceps"?

Portanto, tenhamos clareza: quando um médico vira objeto de preocupação interestadual de conselhos de medicina por dizer num programa de televisão que o parto é um evento FISIOLÓGICO - ou seja, saudável e feito pelo corpo da mulher, que não haja dúvida: a árvore da conveniência intervencionista é que está sendo balançada.

Se a preocupação fosse com a mulher e seu bebê, não teríamos as taxas que temos de "binômios" levados a risco cirúrgico desnecessário, não teríamos o assédio moral da violência obstétrica vivenciada por milhares de mulheres todos os dias, parindo ao som de "na hora de fazer foi bom, que que tá gritando agora?!?"; não teríamos mulheres parindo convertidas em material didático das escolas de medicina; não teríamos classes de profissionais de saúde se engalfinhando pela reserva de mercado da assistência ao parto. A lista continua.

A cesariana a pedido é uma ilusão, uma miragem na qual os obstetras querem mais é que todos acreditem. Não sou contra que este direito exista, apenas penso que as mulheres que o desejam, devam lutar por sua legalização. Porque hoje, toda cesariana sem indicação comprovada é passível de processo, pois contradiz a responsabilidade civil do médico, que entre outras premissas baseia-se no seguinte artigo de seu código de ética:

"Capítulo III - Responsabilidade profissional
É vedado ao médico:
(...)
Art 14 Praticar ou indicar atos médicos desnecessários (...)".

Por ROSELENE DE ARAÚJO.

Um comentário:

Cynara Scheffer disse...

adorei, amei o texto... publiqeui em meu blog, com o link devido, ok? Se quiseres, retiro!

Um abraço e parabéns pelo texto!