Por: Mariana Della Barba, da BBC Brasil em São Paulo
Em: 21 janeiro 2015
"Uma vez cesárea, sempre cesárea." A frase,
dita pelo pesquisador Edwin Cragin, em 1916, era para alertar seus colegas
obstetras sobre o risco de se fazer uma cesárea e sobre como deveriam evitá-la,
especialmente em mulheres grávidas pela primeira vez.
Hoje, 99 anos depois, ela continua, segundo
especialistas, sendo tirada de contexto e usada para alimentar o tabu de que
mulheres não poderiam ter um parto normal se já tiverem passado por uma
cesárea.
Em um país como o Brasil, que tem o mais alto índice de
cesarianas do planeta, essa concepção tem um impacto ainda maior, alimentando o
que o Ministério da Saúde considera uma "epidemia" que já faz com que
84% dos partos na rede privada sejam cesáreas (na rede pública, é de 40%),
enquanto o recomendado pela OMS é de 15%.
Embora tenha índices mais baixos que os brasileiros, os
Estados Unidos também enfrentam desafios semelhantes para baixar do patamar de
32,8% de cesáreas, já que muitas das razões que fizeram esse índice subir por
lá são as mesmas que temos aqui.
Um desses pontos em comum é justamente o tabu do parto
normal após cesárea ou VBAC - sigla em inglês para Vaginal Birth after Cesarean
Section (parto vaginal após uma cesárea), que também é usada no Brasil.
Proibido
O estudo "Listening to Mothers" (Ouvindo as
Mães), feito com mais de 2.400 grávidas nos EUA pela organização Childbirth
Connection, concluiu que muitas das cesáreas estavam ligadas ao acesso restrito
ao VBAC.
"É claro que aumentar as expectativas (de que sempre
é possível um VBAC) não é algo saudável para as mulheres", afirmou à BBC
Brasil Carol Sakala, doutora em saúde pública e bem-estar materno da ChildBirth
Connection. "Mas é completamente inaceitável que não se discuta a
possibilidade de um VBAC com as mães. É inaceitável pressionar uma mulher a ter
outra cesárea desnecessária diante da quantidade de evidências que temos hoje
mostrando que VBACs podem ser seguros."
Carol ressalta que o estudo mostrou ainda que entre
mulheres com cesáreas anteriores, quase a metade (48%) estava interessada em um
parto normal, mas 46% tiveram essa opção negada. Em 24% dos casos, isso ocorreu
por relutância do médico e, em 15%, os hospitais em que elas dariam à luz
simplesmente não faziam VBACs.
'Fui chamada de louca'
Foi exatamente esses empecilhos que a enfermeira e
professora da Universidade Federal de Brasília (UnB) Mônica Chiodi de Campos
enfrentou ao ter seus três primeiros filhos - todos por cesárea - até conseguir
ter seu quarto filho por parto normal, um VBA3C.
"Me colocaram todo o tipo de barreira possível. Foi
muito difícil encontrar uma equipe para me auxiliar no parto. Fui chamada de
louca por muita gente", conta.
"Na minha primeira gravidez, minha bolsa rompeu com
38 semanas e passei por uma cesárea de urgência. No meu segundo filho, meu
ginecologista da época já me despejou a famosa 'uma vez cesárea, sempre
cesárea', e assim foi. Na terceira gestação, achei que seria diferente, mas, ao
ser atendida na maternidade por uma médica plantonista e por ter duas cesáreas,
minha sentença já estava decretada."
A enfermeira conta que, quando engravidou pela quarta
vez, encontrou um médico que, depois de muita insistência, topou lhe
acompanhar. "Durante a gestação, pesquisamos muito sobre VBA3C, que ele
nunca tinha feito. Há pouca literatura sobre isso no Brasil."
"Sofri muita pressão, mas me mantive firme. É claro
que, se houvesse qualquer problema, faria uma cesárea. Mas meu parto foi ótimo
e meu filho (que tem 3 meses) é super saudável. Ao saber da história, várias
mulheres me procuraram, pedindo dicas de VBAC. Muitas nem sabiam que podiam
fazer parto normal depois de uma cesárea."
Terrorismo
Para a obstetra e professora da UFSCar Carla Andreucci
Polido, aos poucos as brasileiras estão indo atrás de informações sobre esse
procedimento, mas ela acredita que ainda haja muito "terrorismo"
sobre risco de rotura uterina após cesarianas.
Segundo Carla, estudos mostram que o sucesso de um VBAC
após duas cesáreas pode ultrapassar 70% e que a segunda, terceira ou quarta
cesarianas têm riscos de complicações semelhantes à prova de trabalho de parto
após cesariana.
Já para o ginecologista Etelvino Trindade, presidente da
Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o risco de rotura
uterina é preciso estar bem claro para a mãe, já que se isso ocorre há chances
de morrerem mãe e bebê.
Os dois médicos, no entanto, concordam que ampliar a
discussão sobre o VBAC é um dos caminhos para se combater a alta incidência de
cesáreas no Brasil.
"Entender que é uma possibilidade segura é uma
constatação especialmente digna de nota em nosso país", afirmou Carla, em
relação ao fato de Brasil ter a maior taxa de cesáreas do mundo. "Isso
porque é cada vez mais provável que mulheres já cheguem aos obstetras com
cicatrizes uterinas anteriores."
Tudo online
Mas como fazer para que o número de partos normais após
cesáreas entre as brasileiras se eleve?
Se formos novamente comparar nosso cenário com o
americano, vale considerar algumas medidas que elevaram a taxa de VBACs de 8,3%
em 2007 para 10,2% em 2012.
As principais iniciativas vêm de organizações
independentes, que divulgam informações sobre o procedimento, auxiliam grávidas
interessadas no tema e publicam na internet taxas de VBACs de milhares de
hospitais e médicos país afora.
Sites como o CalQualityCare comparam os índices em todas
as cidades da Califórnia. O site VBACfinder também faz um levantamento na
maioria dos Estados americanos. Outra fonte é o e-book Vaginal Birth Bans in
America: The Insanity of Mandatory Surgery, que traz um mapa interativo com
hospitais que não atendem mulheres com cesáreas prévias que querem tentar um
parto normal.
É ou não cesarista?
No Brasil, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
deu recentemente um primeiro passo nessa direção.
Uma das resoluções para estimular o parto normal e
reduzir as cesarianas na rede privada (que atende hoje 23,7 milhões de
brasileiras) prevê que as mulheres possam solicitar aos planos de saúde os
porcentuais de cirurgias cesáreas e de partos normais por estabelecimento de
saúde e por médico. O dado deve estar disponível em 15 dias, sob pena de multa
de R$ 25 mil.
A medida foi criticada por algumas classes médicas, que
consideram essa uma invasão na autonomia do médico.
"Invasão é quando uma mulher é cortada sem
necessidade", afirma Carol Sakala, da ChildBirth Connection. "E a
autonomia deveria estar com a mulher. Sempre que são publicados os dados sobre
os procedimentos usados no parto, isso sempre melhora a situação e o
atendimento de mães e bebês"
Para Carol, seria ainda mais útil se as barreiras fossem
eliminadas, e os dados estivessem à disposição para todos online, sem a
necessidade de pedir para o plano de saúde e esperar.
Segundo a ANS, essa possibilidade está sendo estudada
para o futuro.
No entanto Trindade, da Febrasgo, diz que sua preocupação
é com o fato de o médico poder ficar "estigmatizado" ao ver sua taxa
de cesáreas se tornar pública.
"A percepção das taxas pode ficar enviesada e ter
distorções, no caso de um médico especialista em casos complicados, de alto
risco (que podem ser indicação de cesárea). Ele pode ser chamado de cesarista,
como costumam dizer. E isso é incômodo para alguns", afirma o
ginecologista, em referência a como são chamados médicos com altíssimos níveis
de cesarianas.
Karla Coelho, gerente de assistência à saúde da ANS,
rebate essa opinião, dizendo não creditar que haja médicos com 80% de casos
complicados. "Isso é uma reversão da lógica. Não se pode banalizar essa
discussão."
Trindade atribui a alta incidência de cesáreas, em parte,
ao temor dos médicos brasileiros de serem processados.
"Os médicos estão mais reticentes em querer assumir
um risco maior", disse, acrescentando que um congresso em março vai
discutir medidas para se reduzir as cesáreas e apontar propostas.
Questionado se essas propostas não deveriam estar sendo
feitas há anos, ele afirmou que "muitos médicos estão em sua zona de
conforto e, embora concordem que é preciso reduzir as cesáreas, não se
preocupam muito com isso".
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