quarta-feira, 27 de agosto de 2003

Carta ao meu ex-obstetra

Faria,

Pensei muito antes de te escrever, afinal a minha mãe, Silvia, foi e é sua fã durante esses 20 anos que te conhece. Por causa dela te escolhi para ser meu médico durante esse momento tão especial que foi a minha gravidez. A gestação do meu primeiro filho. Após uma cansativa jornada de muitas angústia, raiva, tristeza e decepção de exatos 9 meses, é chegado o grande dia de lavar a alma.

Escolhi essa data pq é o tempo exato de uma gestação. Talvez você nem se lembre disso, já que as gestantes que entram no seu consultório tem uma chance muito maior de terem suas gravidezes interrompidas aos 8 meses e meio, de uma maneira muito mais tranquila pra você. Uma intervenção cirúrgica.

Depositei toda a minha confiança em você, acreditando que pudesse me proporcionar uma gestação e um parto seguro, baseado no meu desejo. Mas você, a toda consulta, sempre se mostrou distante, técnico e frio, medicalizando minha gravidez e monitorando meu filho através de exames invasivos e sem necessidade, sem incentivar minha participação no processo.

Jamais você se preocupou em me indicar exercícios para fortalecer meu períneo, nem me deu dicas de como me preparar para o parto normal. Toda vez que eu falava em parto, você dizia pra deixar pra depois. Não me explicou nem se quer como eram os estágios do trabalho de parto, e nem como era uma contração. Em nenhum momento você me preparou para um parto normal e não fez isso pq sabia desde o início que seria uma cesárea. Você sempre soube disso, pq sabia como conseguir uma. E conseguiu.

Você nunca foi a favor do parto normal, apesar de ter me dito isso na primeira consulta. Você ignorou meu desejo de parir meu filho de forma natural, me aterrorizou com resultados de exames que muito provavelmente não atrapalhariam o meu parto. E eu sempre fui uma grávida de baixo risco.

Como uma pessoa informada que é, com tantos anos de profissão, você sabe que o índice de bebês que se enrolam em cordões é muito alto. Cerca de 30%. Da mesma maneira você sabe que bebês podem nascer de parto normal, nessas condições. Se você não sabe como faz, pergunte a sua mãe ou a alguma tia sua, como era quando elas nasceram. Quando não existia essa cirurgia que vocês adoram, crianças nasciam enlaçadas, com seus cordões desenrolados no momento do parto. E se não for possível, você sabe que hoje em dia dá tempo de fazer a cirurgia. E você, Faria, também sabe. É muito melhor e mais seguro que a mulher entre em trabalho de parto, pois ele que indica que o bebê está pronto pra nascer. Mas você preferiu me enrolar, dizer que era arriscado pro bebê continuar na minha barriga. Preferiu falar que não valia a pena e que seria muito "arriscado" e poderiam acontecer "imprevistos". Ainda me "tranquilou" (a si mesmo) dizendo que "cesárea não era um bicho de 7 cabeças".

Muito melhor seria pra ele se nascesse numa quarta-feira às 19:00. Engraçado que era bem no horário vago da sua agenda, naquele dia que você não atende no consultório. Talvez seja por isso que você não me disse que numa próxima gravidez já seria considerada uma grávida já não tão de baixo risco. Tenho uma cesárea prévia, e você sabe que aqui no Brasil, poucos médicos fazem parto normal após cesariana. Também não me disse dos riscos de infecção, nem de desconforto respiratório do bebê, nada disso. Afinal, não te interessava. O bom era falar que parto normal era arriscado. E cesárea, super segura, não é mesmo?

Sabe, Faria, o parto não pode ser um evento só seu e da sua equipe. Deixe isso ser vivido pela mulher. Dê a ela, o que é só dela. Ao inventar aquele motivo para me operar, você tirou de mim uma grande oportunidade de vivenciar o momento mais importante da minha vida. Você naquele momento me colocou como coadjuvante no processo (como sempre foi, desde o pré-natal).

Você se aproveitou da minha ingenuidade e inexperiência, para me desencorajar do meu parto, para me fazer acreditar que eu não poderia ser capaz de parir meu filho.

Fico pensando diariamente...

Como alguém pode fazer uma operação em outra, cortar 7 camadas dos seu corpo, retirar seu filho antes do tempo de nascer, por puro e simples comodismo?!

Como alguém pode impedir que mulheres se tornem mais confiantes e seguras, parindo elas mesmas seus filhos, protagonizando seus partos, simplesmente pq é mais fácil que elas fiquem "na mão" da equipe!?

Como alguém pode submeter mulheres e seus filhos a um risco de morte 10x maior, sujeitas a um risco maior de infecção hospitalar, depressão pós-parto, desenvolvimento de endometriose, bebês com sofrimento respiratório (como foi o caso do João, que ficou 14 horas na UTI), entre outros, pq não querem perder seus tempos "respeitando" a hora do nascimento!?

Penso que isso é uma coisa muito grave. Pessoas vão pra cadeia por motivos muito menores que esse.

Atendimentos como o seu e o da maioria dos médicos, principalmente da rede particular, me envergonham profundamente. No Brasil, o parto já perdeu há muito tempo, sua essência feminina, natural e fisiológica. Se transformou em algo que deva ser medicalizado e centrado na figura do médico. A protagonização desse evento foi tomado da mulher e entregue nas mãos dos médicos, que se utilizam do excesso de intervenções e tecnologias, de forma desenfreada, quase sempre pra se encontrar desculpas como as que você inventou, para me fazer uma cirurgia desnecessária.

Por outro lado, tudo isso não foi de todo ruim. Graças a essa imensa decepção, pude me fortalecer. Essa carta também é pra comunicar que após esses 9 meses, nasceu uma nova pessoa. Morreu a alienada, passiva, que não acreditava nas suas capacidades. E nasceu uma mulher mais forte, ativa, corajosa, que acima de tudo ouve os seus desejos, nem que para isso tenha que trocar de médico cem vezes. Passei a ler muito sobre o assunto, e fiz até um site que ajuda mulheres a se safarem de médicos como você. No meu site posso fazer indicações de médicos que realmente acreditam que mulheres podem parir, e tem certeza que o parto é um acontecimento fisiológico e natural. Já consegui ajudar algumas mulheres a não cometerem a besteira de continuar com um médico cesarista. E hoje sou uma grande defensora do parto natural, onde intervenções só são feitas quando realmente necessárias. No final do mês de agosto, farei um curso para que possa acompanhar, informar e confortar gestantes nesse momento crucial das suas vidas, o nascimento dos seus filhos. Sei que a minha presença no parto delas pode reduzir pela metade o número de cesáreas desnecessárias como a que você me fez. E só isso já me deixa muito feliz!

Um abraço. E quem sabe ainda não nos encontramos por aí, em algum hospital da vida.

Ingrid e João (nascido em 23/10/02, de cesárea de "emergência", mas marcada com antecedência)

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