Pesquisadora do IFCH traça perfil de parturientes adeptas de procedimento humanizado
Texto de MARIA ALICE DA CRUZ
Publicado em: http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/marco2012/ju518_pag06.php
Num momento em que o Brasil é recordista mundial de cesárea, com base em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), muitas mulheres optam por ter seus filhos da maneira “mais natural” possível (expressão usada por elas), adotando procedimentos domiciliares ou em hospitais preparados para a realização de partos humanizados. Para essas mulheres, mais que um ato médico e fisiológico, o momento de dar à luz é um evento social e cultural, com direito, inclusive, à participação de pessoas da família e amigos, de acordo com constatação da pesquisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp Rosamaria Giatti Carneiro.
Ao iniciar sua pesquisa para doutoramento, orientada pela professora Luiza Margareth Rago, para traçar um perfil das parturientes adeptas do parto humanizado, Rosamaria surpreendeu-se, logo na linha de partida do trabalho, com a organização das grávidas em torno da defesa de um nascimento “mais natural”. Inserir-se no mundo ciber, apesar de a pesquisa virtual não nortear o desenvolvimento do estudo, foi um canal rico para chegar aos grupos de preparação para o parto natural, coordenados por profissionais da área de saúde, incluindo da psicologia. São esses especialistas que oferecem informações a mulheres dispostas a viverem outro modelo de parto que não a cesariana. “No mundo virtual, encontrei blogs de mulheres questionando a prática de cesárea no Brasil. O Brasil é recordista mundial de cesárea, apresentando uma taxa de 90% na rede privada e 40% na rede pública, sendo que a OMS recomenda 15% ao ano”, enfatiza Rosamaria.
“Como queria encontrá-las para saber de onde vem esse desejo e quais as consequências sociais de suas práticas, os grupos me pareceram um lugar interessante para realizar a pesquisa etnográfica, mas principalmente por funcionarem como um canal de comunicação entre a pesquisadora e essas mulheres”, esclarece Rosamaria. De antemão, ela deixa claro que seu objetivo sempre foi trabalhar com mulheres, com as “usuárias ou consumidoras”, forma como elas se autodeclaram, e não com propostas institucionais de outro modelo obstétrico.
“Queria ir à base da coisa, à mulher que está grávida e que vai dar à luz. O meu interesse sempre foi pelo feminino, pela perspectiva, pelas práticas e pela palavra feminina”, explica-se. Até porque, pondera a pesquisadora, já existem trabalhos na área de antropologia e da saúde dedicados à questão do movimento Rehuna (Rede da Humanização do Nascimento). E, além disso, existem estudos abordando a prática enquanto movimento social, formação de médicos humanizados e de enfermeiras obstetrizes, afirma. Contudo, ainda faltava abordar academicamente o olhar das grávidas envolvidas nesse movimento.
Antes de inserir-se pessoalmente no universo das grávidas, Rosamaria descobriu nos blogs especializados mulheres narrando suas experiências de parto, frustrações, queixas, suas satisfações num parto que chegou a termo da maneira idealizada pelas mulheres. É nessa blogosfera, segundo Rosamaria, que as mulheres manifestam o desejo de não perder nenhuma das sensações do momento de nascimento de seus filhos, sejam elas associadas à dor do parto, às contrações, às dilatações, como as manifestadas pela mãe ou pela avó que tiveram o antigamente chamado “parto normal”. “A expressão natural circula entre as mulheres e nos grupos nos quais convivi com elas, mas pode significar muitas coisas, desde um parto com anestesia até um parto em casa sem nenhuma intervenção, depende do caso. Por conta disso, o sentido da palavra ‘natural’ tem seu significado ampliado para além de sua literalidade. O mais importante é respeitar cada mulher em suas escolhas, crenças e cultura”. Um aspecto importante da pesquisa é a informação de que, no caso do parto domiciliar, todo o procedimento é acompanhado por enfermeiras obstetrizes e a residência não deve estar localizada a mais de 20 minutos de um hospital.
A convivência de dois anos e meio acompanhando as reuniões permitiu mapear os motivos que levavam mulheres e maridos a este movimento. Muitos parceiros e mulheres declaravam insatisfação com um procedimento de cesárea realizado em gestação anterior ou até mesmo no puerpério, durante recuperação da cirurgia, segundo Rosamaria. Ela percebeu ao longo da pesquisa que o parto tem relações com a vida pregressa das mulheres, ou seja, com a relação com o próprio corpo, família e emoções.
Algumas mulheres chegam a declarar como um parto humanizado em uma segunda gestação pode aliviar o trauma de uma cesárea anterior. O mais importante para as grávidas, segundo Rosamaria, é que seus desejos sejam respeitados. Principalmente o tempo do corpo delas e do psíquico. “No trabalho, identifiquei algumas dessas mulheres como “as cesareadas”, em que o parto mais natural entra como superação de algo que figura como uma ferida na alma - é essa a expressão usada por muitas delas. Neste caso, a mulher busca um parto ‘mais natural’ numa tentativa de ‘ressignificar’ aquela experiência, a da cesárea anterior, de reviver aquilo, reelaborar o que não considerou satisfatório e também porque ela não quer mais viver aquele episódio”, pontua.
Ela acrescenta que existe toda uma relação negativa com o tempo do hospital, marcado no relógio, com limites pré-fixados que não dão margem para cada parto, cada história e cada mulher, bem como em relação à espera da dilatação do colo uterino, quando dá analgesia ou não. O tempo do hospital é uma coisa com a qual elas tentam trabalhar de outra maneira, com escalda-pés, chás, entre outras formas de controlar dilatação e contrações, recorrendo a técnicas alternativas de suavizo das dores.
Profissionais das mais diferentes áreas e religiosas das mais diversas crenças, na sua maioria concentradas na classe média, as mulheres demonstraram que o momento do parto leva em consideração suas crenças, que, segundo Rosamaria, oscilam desde orientação espiritual, até estilo de vida, alimentação, relação com o mundo e com o ambiente. É também momento psíquico e emocional porque as emoções se fizeram presentes durante todo tempo acompanhado pela pesquisadora. “O medo, o receio da dor, da contração e de alguma coisa dar errado. Mas depois a satisfação e o suposto estado de graça”, descreve Rosamaria.
A pluralidade encontrada nos grupos e a forma de organização de mulheres tão diferentes em torno da proposta de um parto mais humanizado são importantes para pensar novos modos de ação social. “Essas mulheres podem estar contribuindo para a reinvenção do parto, da maternidade e apontando para outros modos de existência femininos, maternos e feministas, já que desejam um parto e uma maternidade mais libertários e afeitos às suas expectativas e requerimentos”, reflete Rosamaria.
Ao contrário de algumas premissas de que as adeptas do parto humanizado são necessariamente atraídas por um modelo de vida alternativo, para o qual são usadas expressões rotuladoras como “bicho grilo” ou “natureba”, Rosamaria esteve na companhia de bancárias, advogadas, artistas plásticas, estudantes, pós-graduandas, alto executivas, vegetarianas, evangélicas, católicas, umbandistas, adeptas da filosofia nova era. Entre elas, selecionou 18 trajetórias interessantes para sua pesquisa. Se elas eram tão plurais, tão diferentes entre si, como se aproximavam? A primeira resposta obtida por Rosamaria foi o mundo ciber. “Neste espaço acabam conhecendo outros grupos ou encontrando outras amigas que já tiveram esse tipo de parto. Têm listas de discussão. E eu participei dessas listas”, declara. Juntas, se organizam em passeatas, caminhadas, convocam reuniões, seminários. “E a coisa se dissemina”, avisa Rosamaria.
Do ponto de vista da situação econômica, a pesquisadora diz ter trabalhado com mulheres de camadas médias, encontrando poucas mulheres em situação extremamente confortável, mas também pouquíssimas, quase nenhuma, advindas das camadas mais baixas da sociedade. Algumas famílias chegavam, segundo ela, a fazer empréstimos para poder pagar parto domiciliar, vender o carro, fazer economia para se permitir ter um parto em casa, ou poder custear outro modelo de assistência num hospital. Todas, segundo a pesquisadora, tinham plano de saúde privado, acesso à internet e alguma instrução.
Outro aspecto que chamou atenção na pesquisa foi o capital cultural dessas mulheres. “Elas são questionadoras, indagam os médicos em consulta de pré-natal, indagam sobre a prática do exame de toque (rotina) e muitas vezes pediam segunda opinião para outros médicos”, acrescenta Rosamaria.
PUBLICAÇÃO:
Tese: "Cenas de parto e políticas do corpo: uma etnografia de experiências femininas de parto humanizado”
Autora: Rosamaria Giatti Carneiro
Orientação: Luiza Margareth Rago
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
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