“A humanização do nascimento não representa um retorno
romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso,
oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro”
(Ricardo Herbert Jones)
A discussão sobre o local de parto deve se pautar,
essencialmente, em dois níveis: respeito à autonomia e ao protagonismo feminino,
uma vez que a escolha do local de parto é um direito reprodutivo básico; e
reconhecimento e adequada interpretação das evidências comparando partos
domiciliares planejados e partos hospitalares em gestantes de baixo risco. Não
se compreende mais na atualidade o processo de tomada de decisão baseado
exclusivamente nas concepções e na experiência do prestador de cuidado, uma vez
que, por definição, Medicina Baseada em Evidências consiste na integração
harmoniosa da experiência clínica individual com as melhores evidências
científicas correntemente disponíveis e com as características e expectativas
dos pacientes.
Apesar da posição contrária de conselhos regionais de
Medicina e da FEBRASGO, que vêm sistematicamente desaconselhando (embora não
proibindo) o parto domiciliar, devemos destacar que tanto a Organização Mundial
de Saúde (OMS) como a Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras
(FIGO) respeitam o direito de escolha do local de parto pelas mulheres e
reconhecem que, quando assistido por profissionais habilitados, há benefícios
consideráveis para as mulheres que querem e podem ter partos domiciliares. A
OMS reconhece como profissionais habilitados para prestar assistência ao parto
tanto médicos como enfermeiras-obstetras e parteiras e recomenda que as
mulheres podem escolher ter seus partos em casa se elas têm gestações de
baixo-risco, recebem o nível apropriado de cuidado e formulam planos de
contingência para transferência para uma unidade de saúde devidamente equipada
se surgem problemas durante o parto(1–3). Por sua vez, a FIGO recomenda que
"uma mulher deve dar à luz num local onde se sinta segura, e no nível mais
periférico onde a assistência adequada for viável e segura” (4). Outras
sociedades no mundo, como o American College of Nurse Midwives (5), a American
Public Health Association (6), o Royal College of Midwives (RCM) e o Royal
College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) (7) apoiam o parto
domiciliar para mulheres com gestações não complicadas. De acordo com a
diretriz do RCM e do RCOG, “não há motivos para que o parto domiciliar não seja
oferecido a mulheres de baixo risco, uma vez que pode conferir consideráveis
benefícios para estas e suas famílias” (7).
Mesmo o American College of Obstetricians and
Gynecologists (ACOG), conquanto explicite que considera hospitais e centros de
parto normal mais seguros, reconhece o direito das mulheres de escolher o local
do parto. Citando literalmente o resumo da diretriz, publicada em fevereiro de
2011: “Embora o Comitê de Prática Obstétrica acredite que os hospitais e
centros de parto normal sejam os locais mais seguros para o nascimento, ele
respeita o direito de uma mulher de tomar uma decisão medicamente informada
sobre o parto. Mulheres questionando sobre o parto domiciliar planejado
deveriam ser informadas sobre os seus riscos e benefícios baseados nas recentes
evidências. Especificamente, elas deveriam ser informadas que embora o risco
absoluto possa ser baixo, o parto domiciliar planejado está associado com um
risco duas a três vezes maior de morte neonatal quando comparado com o parto
hospitalar planejado. É importante que as mulheres devam ser informadas que a
adequada seleção de candidatas para o parto domiciliar; a disponibilidade de
enfermeiras-obstetras ou parteiras certificadas, ou médicos atuando dentro de
um sistema de saúde integrado e regulado; o pronto acesso à consulta; e a
garantia de transporte seguro e rápido para os hospitais mais próximos são
críticos para reduzir as taxas de mortalidade perinatal e obter desfechos
favoráveis do parto domiciliar.” (8)
Em relação às evidências, a despeito dos temores do ACOG,
devemos destacar que essa conclusão de aumento do risco de morte neonatal se
baseia unicamente nos resultados da controvertida metanálise publicada em 2010 por
Wax et al. no American Journal of Obstetrics and Gynecology (AJOG) (9). O
problema é que essa metanálise, que incluiu 12 estudos originais e um total de
342.056 partos domiciliares e 207.551 partos hospitalares planejados,
apresentou diversos vieses e erros metodológicos grosseiros. Os autores
concluíram que os partos domiciliares planejados se associam com menor risco de
intervenções maternas, incluindo analgesia peridural, monitoração eletrônica
fetal, episiotomia, parto operatório, além de menor frequência de lacerações,
hemorragia e infecções. Dentre os desfechos neonatais dos partos domiciliares
planejados, verificou-se menor taxa de prematuridade, baixo peso ao nascer e
necessidade de ventilação assistida. No entanto, apesar de as taxas de mortalidade
perinatal serem semelhantes entre partos domiciliares e partos hospitalares, os
partos domiciliares se associaram com aumento de cerca de três vezes das taxas
de mortalidade neonatal.
O artigo em questão gerou intensa polêmica na comunidade
científica internacional, seguindo-se diversas cartas publicadas em sequência
no próprio AJOG, das quais uma tem o provocativo título “Parto domiciliar
triplica a taxa de morte neonatal: comunicação pública ou má ciência?”(10).
Diante de todas as críticas, o AJOG resolveu investigar o estudo em questão, e
a revisão pós-publicação de fato encontrou erros na análise original, embora
não tenha alterado suas conclusões. A conceituadíssima revista Nature se
interessou pela questão, porém mesmo solicitando diversas vezes que tanto Wax
como o ACOG comentassem os problemas apontados por vários especialistas, esses
declinaram o convite. A Elsevier, editora que publica a revista, reconhece os
erros, mas não acredita que esses possam motivar uma retratação (11).
Tentando resumir a enorme quantidade de críticas feitas à
metanálise de Wax, podemos afirmar que, à diferença das revisões sistemáticas
da Cochrane, essa não seguiu as diretrizes estabelecidas internacionalmente
para condução e publicação de metanálise, como o PRISMA (Preferred Reporting
Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses) ou o MOOSE (Meta-Analyses and
Systematic Reviews of Observational Studies). Diversos erros estatísticos foram
cometidos, até porque os autores utilizaram uma calculadora para a metanálise que
apresenta vários problemas, resultando em Odds Ratio e intervalos de confiança
incorretos, o que foi reconhecido pelo próprio autor do programa. No entanto, o
principal erro enviesando a análise não foi estatístico, e sim um viés de
seleção dos estudos, porque os autores da metanálise excluíram o grande estudo
de coorte holandês com mais de 500.000 partos do cálculo do risco de morte
neonatal, embora o tenham incluído no cálculo do risco de morte perinatal. Na
verdade, os dados da metanálise são contraditórios em relação à morte neonatal
e perinatal basicamente porque os autores definiram morte perinatal como morte
fetal depois de 20 semanas ou a morte de um recém-nascido (RN) vivo nos
primeiros 28 dias de vida, em vez de nos primeiros sete dias de vida, como é a
recomendação internacional. Por outro lado, outros estudos usados para calcular
o risco de morte neonatal foram incorretamente incluídos e outros que poderiam
ter sido incluídos para o cálculo de morte perinatal foram excluídos, por
razões que não ficam bem claras. Os dados utilizados para o cálculo de morte
neonatal incluíram partos que não tinham sido assistidos por parteiras ou
enfermeiras-obstetras certificadas, o que já se demonstrou ser fator importante
para redução dos riscos. Mesmo revisando os dados e apresentando os gráficos em
uma publicação ulterior na revista com os novos números calculados
corretamente, isso não resolve os sérios problemas metodológicos pertinentes à
definição de termos e critérios de inclusão e exclusão.
Em suma, como refere Keirse em seu brilhante artigo
publicado na Birth em Dezembro de 2010 (“Home Birth: Gone Away, Gone Astray,
and Here To Stay”) “combinar estudos de parto domiciliar e hospitalar, sem
diferenciar o que está dentro deles, onde eles estão e o que os circunda, é
semelhante a produzir uma salada de frutas com batatas, abacaxi e salsão”. (12)
O fato é que, à parte a enviesadíssima metanálise de Wax
et al., todos os grandes estudos observacionais publicados reforçam as
vantagens do parto domiciliar em termos de desfechos maternos, resultando em
menor taxa de intervenções como episiotomia, analgesia, uso de ocitocina,
operação cesariana e parto instrumental (fórceps e vácuo-extrator), sem aumento
do risco de complicações para mães e bebês e com elevado grau de satisfação das
usuárias que passaram por essa experiência (13–15). Dentre esses estudos,
destacamos o estudo holandês (de Jonge et al.), publicado em 2009, envolvendo
mais de 500.000 partos (16), e que foi arbitrariamente excluído da metanálise,
como já apontamos anteriormente, e os estudos mais recentes, publicados em
2011, o do National Health System (NHS) no Reino Unido (mais de 60.000 partos)
(17) e outro grande estudo de coorte holandês com mais de 679.000 partos (18).
Nesse último estudo, evidenciou-se uma mortalidade perinatal de 0,15% em partos
domiciliares planejados contra 0,18% em partos hospitalares planejados em
parturientes de baixo risco. O fato é que, infelizmente, mesmo com a melhor
assistência, 15-18 em cada 10.000 RN irão morrer, quer nasçam em casa quer no
hospital, mesmo em países desenvolvidos como a Holanda, não havendo diferença
significativa nessa mortalidade de acordo com o local de parto.
Embora a utilização de evidências de estudos
observacionais possa ser alvo de críticas, o fato é que não dispomos de ensaios
clínicos randomizados (ECR) comparando partos domiciliares vs. hospitalares. Um
único ECR foi publicado e incluído na revisão sistemática da Biblioteca
Cochrane, porém só conseguiu avaliar 11 mulheres (19). De fato, alguns
especialistas podem considerar difícil elaborar recomendações fortes com base
em evidências fracas, oriundas de estudos observacionais, mas o mínimo que
profissionais e sociedades deveriam reconhecer é que também não dispomos de
evidências fortes corroborando a segurança do parto hospitalar para
parturientes de baixo risco e seus neonatos.
No entanto, randomizar mulheres para parto domiciliar ou
hospitalar é virtualmente impossível: de acordo com Keirse, essas mulheres para
quem “tanto faz” parir em casa como no hospital seriam “tão raras quanto
elefantes brancos”, mas mesmo que essas mulheres fossem encontradas,
dificilmente as conclusões de um ensaio clínico randomizado com essa amostra
poderiam ser extrapoladas para mulheres diferentes em situações e contextos
clínicos diferentes. Mulheres que DESEJAM ter seus bebês em casa diferem
substancialmente daquelas que escolhem um parto hospitalar, da mesma forma que
os profissionais que prestam assistência a partos domiciliares ou
exclusivamente a partos hospitalares também são bastante diferentes entre si.
Na prática, devemos considerar que tanto gestantes como
profissionais de saúde têm sempre o mesmo e primaz objetivo de garantir uma
experiência de parto satisfatória, com mãe e bebê saudáveis. Por outro lado, é
um direito reprodutivo básico para as mulheres poder escolher como e onde irão
dar à luz. Essa escolha deve ser informada pelas melhores evidências
correntemente disponíveis, e essas evidências sugerem, sem se considerar a
metanálise equivocada de Wax et al., que o parto domiciliar é uma opção segura
para as parturientes de baixo risco atendidas por profissionais qualificados.
Como vantagens em relação ao parto hospitalar se destacam a menor frequência de
intervenções para a mãe e o conforto e a satisfação das usuárias, que vivenciam
uma experiência única e transformadora em seu próprio lar. As taxas de
mortalidade perinatal e neonatal são semelhantes àquelas observadas em partos
hospitalares de baixo risco. No entanto, a decisão final deve se basear tanto
nas evidências como nas características e expectativas das gestantes, bem como
na experiência e qualificação dos prestadores e nas facilidades de acesso aos
serviços de saúde.
De fato, o parto domiciliar planejado não somente
continua acontecendo no Brasil, como vem crescendo o número de mulheres que
optam por essa alternativa, apesar de ainda não dispormos de estatísticas
confiáveis sobre o número exato, uma vez que os nossos sistemas de informação
não permitem ainda distinguir partos domiciliares planejados dos não planejados
e ocorridos sem assistência. No entanto, com o acesso amplo à Internet e o
constante debate nas redes sociais, diversas mulheres têm compartilhado e
comparado as suas experiências de parto em nosso país. Existe uma parcela
crescente de mulheres insatisfeitas com o atual modelo de assistência
obstétrica, excessivamente tecnocrático e caracterizado, por um lado, pelas
taxas de cesárea inaceitavelmente elevadas no setor privado (mais de 80%) e,
por outro, pelos partos traumáticos e com excesso de intervenções no Sistema
Público de Saúde. Apesar da política de Humanização da Assistência ao Parto e
Nascimento preconizada pelo Ministério da Saúde no Brasil (20), é fato que o
modelo atual, hospitalocêntrico e medicalocêntrico, não permite ainda à maior
parte das usuárias ter uma assistência ao parto humanizada e segura. Vivemos
ainda em um país onde, "quando não se corta por cima, se corta por
baixo", como bem definem Diniz e Chachan, referindo-se às cesáreas e
episiotomias desnecessárias (21). Mais ainda, vivenciamos o chamado “paradoxo
perinatal brasileiro”, uma vez que apesar de termos 98% de partos hospitalares
e da adoção indiscriminada da tecnologia para assistência ao parto, a
mortalidade materna e neonatal persistem elevadas (22).
Para completar, uma em cada quatro mulheres brasileiras
internadas para assistência ao parto em hospitais públicos ou privados relata
ter sofrido violência institucional, traduzida por qualquer forma de agressão
perpetrada pelos profissionais de saúde que lhe prestam atendimento. Essas
agressões não envolvem apenas o uso de procedimentos, técnicas e exames
dolorosos e desnecessários, mas até ironias, gritos e tratamentos grosseiros
com viés discriminatório quanto a classe social ou cor da pele (23). A
violência institucional durante o parto pode assumir múltiplas facetas e
representa um problema internacionalmente reconhecido (24). Em diversos
hospitais ainda não se permite a presença do acompanhante, mesmo com a Lei
11.108 estabelecendo a obrigatoriedade de tanto hospitais públicos como
privados permitirem a presença, junto à parturiente, de um acompanhante durante
todo o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato (25).
O atual modelo de assistência ao parto em nosso País é
assustador, com os 52% de cesarianas (26) contrastando com uma mortalidade
materna em torno de 70 para 100.000 nascidos vivos (27; 28) Mais ainda, embora
falido e não sustentável em longo prazo, permite ainda a muitos profissionais
soluções cômodas a que esses se aferram, de dentro de sua zona de conforto,
como a praticidade e a conveniência de programar cesarianas eletivas sem
indicação médica definida. Curiosamente, são esses os mesmos profissionais que
defendem o "direito" da mulher de escolher sua via de parto, embora
aparentemente este direito tenha mão única, só valha para a minoria de mulheres
que desejam uma cesariana e não inclua aquelas que desejam um parto normal nem
tampouco se estenda para a decisão sobre o local de parto (29). A voz das
mulheres e o seu direito de escolha têm sido grandemente ignorados (30).
O debate em torno do parto domiciliar, não apenas no Brasil,
mas em todo o mundo, tem se tornado extremamente polarizado e politizado, de
forma que nós não esperamos com essa manifestação das mulheres resolver a
polêmica. Nossa intenção é promover ampla discussão com toda a sociedade,
tentando estabelecer um consenso, visando a garantir o respeito a um direito
reprodutivo básico, qual seja a escolha do local de parto, mas também a
implementar estratégias para aumentar a segurança e a satisfação das usuárias
em TODOS os partos (12). Isto inclui tanto melhorar e humanizar a atenção
hospitalar no sentido de que os partos assistidos em maternidades ou centros de
parto normal possam representar uma experiência gratificante
para as mulheres, como estabelecer diretrizes para a
seleção adequada das candidatas ao parto domiciliar e um atendimento obstétrico
seguro e de qualidade em domicílio.
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