"Não se esqueçam que o Natal nada mais é que a celebração
de um parto.
Sim, um parto que pôde oferecer o começo de uma história,
que plasmou no imaginário de tantos um modelo de sociedade centrado na
fraternidade. Foi a partir deste ato que surgiu o "amarás ao próximo como
a ti mesmo".
Todavia, foi um parto, cheio de mistérios e nuances.
Mas fica a constatação de que o nascimento em si é
apagado da narrativa. Depois de longa caminhada para realizar o recenseamento
José e Maria, já estafados pela peregrinação, refugiam-se em uma estrebaria.
Ali, na companhia dos animais e do seu marido, ela sente suas dores.
Fade out... a imagem obscurece e, quando volta a
aparecer, o menino Jesus já está deitado na manjedoura, sob o olhar plácido dos
bichos e a proteção de José. Em algumas imagens da cena primitiva do nascimento
de Cristo ele ainda se mantém no berço improvisado, envolto no feno; em outros
está já no colo de sua mãe, mas qualquer referência à amamentação também é
sonegada.
Uma mãe virgem, que não gritou para parir e cujos seios
se mantiveram cobertos para toda a eternidade. A cena do nascimento do Senhor
estará sempre envolta em moralismo e sob a égide do patriarcado.
O trabalho de parto de Maria, com seu grito primal, seu
suor e seu esforço, suas dores e contrações, além da força e a passagem que
roubaria dela a virgindade, foi subtraído da imagem que se imortalizou no
presépio natalino. Ficamos com o resultado, o produto oferecido pela ação do
Espírito Santo, mas o trabalho genuinamente feminino e transformador de Maria
se mantém esquecido.
Neste Natal, pensem um pouco em Maria e seus desafios.
Melhor ainda, pensem em todas as Marias que ainda hoje lutam para que seus
partos sejam dignos e respeitosos. Tenham na mente a imagem da mais famosa de
todas elas, aquela que se dedicou para que seu filho pudesse nascer bem, no
melhor lugar possível: onde ela se sentiu segura e emparada, com seu
companheiro ao lado, e tendo silenciosos e compassivos animais como doulas.
(Após uma conversa com a querida Maria do Carmo Dischinger)"
Por Ricardo Hebert Jones, obstetra humanizado do Rio Grande do Sul.
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